segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Não custa nada!

GESTOS VALIOSOS COMO GENTILEZAS, ELOGIOS SINCEROS E DEDICAÇÃO CRIAM LÓGICAS NO PSIQUISMO
A gratuidade exerce um estranho fascínio sobre nós.
Gestos espontâneos, crimes imotivados, atos imprevisíveis de heroísmo ou generosidade, a violência sem justificativa ou a crueldade encontram-se nesta insólita categoria dos eventos que não podemos antecipar, prever ou controlar.
A tese psicanalítica nesta matéria é relativamente simples. Atos sentidos como gratuitos possuem a mesma estrutura de relação primária de amor. Diz-se que a criança é amada de forma incondicional, ou seja, independentemente do seu "desempenho", das suas arbitrariedades ou da voluntariedade de suas ações. Apesar de suas fraquezas e talvez por causa de suas fragilidades doamos aos pequenos nossa disposição e ternura.
Lacan denominou de dialética do dom o processo pelo qual a criança apreende como o ato de doação impõe-se em sua força e determinação, tanto ao objeto que é doado quanto ao agente e ao destinatário. É uma grande conquista quando a criança é capaz de oferecer uma flor caída ou um rabisco qualquer como prova de amor ou prova de gratidão. Este gesto é recebido pelo adulto como uma espécie de devolução, uma contrapartida amorosa ao trabalho antes empenhado. Este ato mostra sua estrutura dialética, pois inverte a posição inicial de passividade da criança; substitui o valor funcional dos objetos pelo "não valor" contingente dos signos devolutivos e repara ou reconstitui frustrações e privações inerentes à relação de cuidado. Ao caráter altamente simbólico do dom e seu potencial de moldagem de nosso imaginário amoroso acrescente-se que no dom há algo de real irredutível à lógica das trocas.
É esse "a mais", que não custa nada e muda tudo, não só porque cria algo novo e diferente de um comércio de investimentos ou de uma estrita lei de contrapartida, mas também porque engendra um novo tipo de satisfação. Como dizia Machado de Assis, a gratidão de quem recebe um benefício é bem menor do que o prazer de quem o faz.
O dom cria uma obrigação que não é uma necessidade compulsória, ou seja, a "obrigação" de "livremente" retribuir. Daí que em português dizemos "obrigado!" para nos referir a atos que são "não obrigatórios". A gênese da gratidão surge como um capítulo da lógica do reconhecimento, por meio da qual nos tornamos sujeitos, capazes de reciprocidade, reflexividade e solidariedade. Esse segredo da forma pela qual o dom é exercido é altamente cobiçado. Sem ele as relações de trabalho se revelariam como obscena exploração, as relações de ensino como mera imposição normativa e as relações afetivas como pura troca instrumental de uso e interesse.
Também nos relacionamentos familiares e amorosos esperamos "algo a mais" do que o desenvolvimento de objetos recíprocos. Ou seja, induzir esse plus que não custa nada pode tornar-se a condição que prova que este funcionário não é apenas um funcionário que pode ser trocado por qualquer outro como um objeto obstoleto. Empresas sonham com aquele que dá algo a mais, assim como o capital que se reproduz magicamente, sem custar nada. Relatórios adcionais, horas extras, cursos compulsórios de aprimoramento, procedimentos de segurança, de prevenção, de controle e de aprimoramento pessoal são contabilizados cada vez mais como uma poluição de coisas gratuitas.
Não custa nada ser gentil, elogiar o próximo ou sorrir para os outros; contudo, aqui começa o próximo capítulo: como fazer alguém te odiar por ser obrigado a te amar..."

{Fonte: DUNKER, Christian Ingo Lenz. Não custa nada. Revista Mente e Cérebro. São Paulo, ano XVIII, nº 214. 2010}